Capítulo
4
Memórias de Liz
A mansão pela primeira vez parecia um
lugar desconfortável pra mim, eu queria sumir daquela casa, eu queria sumir
daquele lugar e de todos, especialmente, eu queria matar o velho biruta...
“Se eu pudesse
fazer com que ele morresse uma segunda vez...”
Entrei no meu quarto completamente
desorientada, bati a porta com força chorando grossas lágrimas e pensando o
quanto eu o odiava por ter tornado minha vida um inferno desde de que ele
decidiu morrer... e o quanto ele continuava a me punir mesmo após a sua morte.
“Talvez ele me
culpasse pela morte do papai, talvez...”
-Nãooooooo! Eu confiava em você...! Eu
te odeio, seu velho sem juízo! Você quer acabar com a minha vida?! Mas eu não
vou deixar! Eu não me importo com sua fortuna! Guarde-a no seu caixão! Eu vou
embora daqui, vou fugir... e só!
Era um choro convulsivo, minha cabeça
doía muito como se fosse explodir e eu tremia de raiva e indignação com aquela
traição.
Sally batia na porta pedindo para
entrar, mas eu não queria ver ninguém, não queria. Não havia nada a ser
feito eu simplesmente estava condenada.
- Liz minha querida, Liz abra a
porta...
Não sei dizer quando eu apaguei, mas
dormi pesado e sonhei com o velho Bill, rindo pra mim, ou seria rindo de mim, não
sei dizer. Porque mesmo ali, a raiva era imensa e eu não conseguia pensar
direito.
A escuridão tomou conta do sonho e uma
névoa espessa se formou entre eu e o velho, a raiva, deu lugar ao medo, eu não
conseguia mais ver o sorriso dele, nem vê-lo. Eu estava lá sozinha, só
escuridão e neblina, nenhum pensamento ousava passar pela minha cabeça, a
expectativa era imensa, o medo do que eu podia encontrar fazia com que o meu
coração acelerasse mais rápido que o coração de um bebê. Eu costumava a ter pesadelos
e geralmente eram iguais, quase toda noite, um desconforto apertou meu estômago
e eu os vi, olhos brilhantes, vermelhos sangue dentro da névoa em minha
direção, e se aproximavam cada vez mais. Olhos, que eu não conhecia, olhos de
ódio, profundos e frios.
- Bill é você? Vovôôô...
A medida que aqueles olhos se
aproximavam as minhas palavras iam sumindo, até que eu não consegui mais dizer
nada e imediatamente eu quis fugir, mas não conseguia me mexer. Percebi sua
sombra na névoa, era mais alta do que eu e sua forma era forte e masculina,
fechei os olhos esperando acordar a tempo até que uma mão tocou meu antebraço
com força eu gemi de dor e desespero, suas mãos queimavam em mim. Logo em
seguida, acordei suando muito, coração batendo acelerado, boca seca e mil
pensamentos invadindo minha cabeça, mas o que era aquilo, quem era aquele...?
Falando para mim mesma, eu repetia feito louca:
- Esquece isso, foi só um pesadelo, só
um pesadelo...
Era tudo que eu podia fazer agora, tentar
me controlar. Foi uma noite difícil pensei; dia estranho. E quando olhei no
relógio, marcavam onze horas da manhã? O quê? Ou eu dormi um dia inteiro ou
ainda nem era noite. Foi então que me lembrei o porquê me joguei na cama, o
porquê estava me sentindo quebrada e desejei voltar ao pesadelo a viver a minha
realidade.
Mas uma vez alguém batia na porta do
meu quarto, só que dessa vez era leve e uma voz trêmula disse do outro lado:
- Senhorita, senhorita Liz, a senhora
Leonor espera pela senhorita para servir o almoço.
De súbito gritei sem ao menos abrir a
porta:
- Clarice, diga a Leonor que não tenho
apetite, não quero ver ninguém e nem falar com ninguém, entendido?
Clarice era quase da minha idade, seu
pai era o nosso jardineiro, boa gente. Ela era bastante tímida e um tanto
simpática, eu não me relacionava muito com ela, e é verdade que nem sempre
notava sua presença de tão quieta que a menina era. A Sal é que vivia
conversando com a Clarice, dando conselhos e incentivando-a a estudar, a ir
mais longe, “quem sabe cursar a universidade”, a Sal dizia. Não via muito
entusiasmo de sua parte, mas com certeza respeito eu via. Era uma boa moça como
diria o Bill.
- Sim, senhorita.
E logo passos apressados cruzaram a
frente do meu quarto e sumiram pelo corredor, descendo as escadas. Deitada na
cama, deixei que diversas coisas passassem pela minha cabeça, menos aquilo que
me fez perder a fome.
“Não sei por que
Leonor insistia tanto em viver como no século passado.”
Eu ironizei:
- Senhorita isso, senhora aquilo...
“Não entendo
porque ela fazia tanta questão em obrigar os empregados a aprenderem as normas
cultas e repetí-las o tempo todo. Quem fazia isso hoje em dia?”
- Por mim seria sempre Liz, Liz, Liz...
Sem mais...
Olhei ao redor e dei uma boa observada
em meu quarto. Espaçoso, minha cama no centro, colchas grossas e bem
trabalhadas, armários, um frigo-bar, um imenso closet e muitas outras coisas
que enchiam aquele ambiente de requinte e bom gosto, quase um quarto digno de
uma princesa ou seria inteiramente de uma princesa. A verdade é que ele não
perdia para nenhum outro em que eu estivera hospedada quando o Bill era vivo.
Ele adorava conforto e não economizou em nada com a minha pequena e luxuosa
suíte cinco estrelas Grant. Na verdade ele se esforçou ao máximo para que eu
não sentisse tanta falta de casa quando os meus pais se foram. Foi um choque
para ele, seu filho único, sua nora... Foi um verdadeiro milagre que a criança
tivesse sobrevivido, foi isso que disseram a ele quando me entregaram nos seus
braços, após o resgate. Eu tinha cinco anos e ele era tudo que me restou.
Sentada ali, pude me lembrar o quanto
ele era carinhoso, como se preocupava com os detalhes da vida da sua pequena
guerreira. Seus olhos fortes e seu sorriso fácil era o que eu costumava receber
todas as manhãs, pois era ele quem me acordava, era ele quem falava que eu
tinha o espírito de uma índia guerreira. Ele confiava na minha força, mas do
que eu mesma, e não desviava seu olhar de mim. O tempo em que passávamos juntos
era tão grande, que o Anthony, filho da Leonor e preferido do meu avô antes que
eu chegasse, torcia o nariz para mim e cutucava sua mãe, quando me via. Ele era
muito chato, às escondidas, puxava meu cabelo e gritava comigo, não só comigo,
mas também com o Drew. Anthony era pelo menos dez anos mais velho que eu e o
Drew, o que dava a ele uma vantagem imensa sobre nós. Nunca conseguimos revidar
suas maldades.
Desde que fui morar com o Bill, nenhum
dos meus dias tinham sido iguais, ele sempre inventava uma viagem, era um
desbravador, um espírito livre, ele ouviu isso na África quando fomos lá em
certa ocasião. Um chefe de uma tribo, disse a ele que o seu espírito era livre,
desbravador, foi lá que nós ouvimos do mesmo senhor que eu tinha um espírito
guerreiro e indomável. Ele gostou tanto disso que depois desse dia ele nunca
mais deixou de me chamar de “minha pequena guerreira”.
As lembranças passavam diante dos meus
olhos como se estivessem acontecendo naquele momento.
O Bill apesar de nunca tirar seus olhos
de mim, sempre deixou que eu resolvesse os meus problemas sozinha. E sempre me
alertou quanto a julgamentos. Ele dizia:
“-
Julgamentos minha pequena guerreira, pertencem às almas precipitadas, lembre-se
disso. O homem sábio trava a batalha dentro de si e somente na exaustão o
guerreiro vencedor pode dominá-lo, assim, ele jamais nega a sua natureza, mas
amadurece o seu espírito.”
De todos os lugares que ele mais gostou
- sei disso por causa da intensidade do seu entusiasmo quando visitávamos
muitos lugares- A Índia, a África, a China e a Grécia, tocaram seu coração como
diamantes tocam os olhos das mulheres apaixonadas. Não pelas suas belas
paisagens, mas pelo povo. Meu avô gostava de gente e de conhecimento e esses
lugares o enfeitiçaram irremediavelmente.
É por isso que eu queria tanto viajar,
queria viver um pouco disso tudo novamente, terminar o que ele começou, dá a
volta ao mundo e me tornar um espírito livre e desbravador.
Com todas essas viagens eu nunca pude
ter uma vida normal, sempre tinha um professor particular nos acompanhando, o
vovô os escolhia pela coragem demonstrada e pelas charadas decifradas que ele
lançava como desafio, ele nunca escolhia pelo conhecimento acadêmico e por seus
belos currículos, o que era estranho, já que eu precisava aprender algo. O mais
estranho é que sempre dava certo e todo mundo saía ganhando. Eu aprendia, nós
desbravávamos, o professor ganhava muito bem e todos voltávamos felizes e
seguros para casa. A Leonor detestava as viagens do velho Bill, ele geralmente
evitava os lugares convencionais como Paris e Paris, não que ele não gostasse,
mas é que ele era um homem rústico, se escolhesse Paris, teria que levar sua jovem
esposa, portanto, não poderia dizer não ao tempo perdido com grifes e jantares
que não matavam a fome de ninguém, segundo ele.
Eu por outro lado adoraria se ele
variasse um pouco, e ajudasse a me sentir mais feminina. A presença de uma
mulher, não seria nada mal de vez em quando, mesmo que fosse a “Leoa”.
A Leonor quase nunca me dirigia a
palavra e depois de um tempo nem mesmo com o Bill ela costumava a falar
direito. Vivia pajeando seu tão precioso filho e ensinando-o a tirar vantagens
do coração bondoso do Bill.
No dia em que o desbravador fechou os
olhos, eu tinha quinze anos, e tantos sonhos pra realizar com ele ao meu lado.
A pequena guerreira vacilou, parte de mim entristeceu tão profundamente que eu
pensei nunca mais ser possível gargalhar despreocupada e naturalmente como
antes. A dor não tinha fim. Os dias passaram. As coisas mudaram. Eu me tornei
prisioneira em minha própria casa e Leonor a cada dia que passava espalhava
vitoriosamente suas peças sobre o tabuleiro. Mas eu não me importava, eu só
queria levar adiante. E nem mesmo as conversas animadas e o coração
entusiasmado do Drew, conseguiam transpor a barreira de gelo ao redor do meu.
“ Por que ele fez isso? Por que ele pensou uma
coisa dessas? Por que me prender assim, se eu era sua pequena guerreira
indomável?”
- Ele me traiu!